Ter um pedaçinho de terra ainda é um privilégio no Brasil; a conquista, inclusive, pode significar a sobrevivência de uma família ou de uma comunidade. Conforme o Estatuto da Terra, por meio da Reforma Agrária, o Estado brasileiro deve promover a democratização fundiária, melhorando a distribuição da propriedade rural, para atender aos princípios da justiça social e do aumento da produtividade, com o intuito de proporcionar o incremento da produção de alimentos básicos, da geração de ocupação e de renda, do combate à fome e à miséria, da interiorização de serviços públicos básicos, entre outros benefícios.
Nessa perspectiva, se insere a agricultura familiar – atividade econômica desempenhada por trabalhadores rurais, que utilizam predominantemente mão de obra da própria família, desenvolvendo renda familiar originária da produção agrícola. Não vinculado à exploração empresarial do agronegócio, esse segmento agrícola é formado por empreendimentos menores, unidades associativas ou cooperativas, onde agricultores se reúnem para produzir alimentos básicos ou produtos agropecuários, como os laticínios.
O último Censo Agropecuário, de 2006, identificou 4.367.902 estabelecimentos de agricultores familiares no Brasil, o que representa 84,4% das unidades produtivas do país. Porém, esse contingente de produtores ocupavam somente 24,3% da área dos estabelecimentos agropecuários. Por outro lado, estabelecimentos não familiares eram 15,6% do total dos estabelecimentos, mas ocupavam 75,7% da área, revelando uma estrutura agrária concentrada. Apesar de utilizar uma área menor, em relação às propriedades não familiares, a agricultura familiar produz 87% da mandioca do país, 70% do feijão, 46% do milho e 58% da produção nacional do leite.
Atuando na contramão dos latifundiários, a agricultura familiar tem como objetivo o uso da terra de maneira integrada e sustentável, com o homem respeitando a natureza, diversificando a produção e não utilizando agrotóxico. Nesse contexto laboral e produtivo, a estudante do curso de Graduação Tecnológica em Gestão de Cooperativas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Marciele da Silva Dionízio, de 20 anos de idade, vive e trabalha com os pais e seis irmãos na produção de castanhas de caju, no Assentamento Rural Boa Sorte, localizado em João Câmara, na microrregião da Baixa Verde. Eles compram a oleaginosa crua, assam, descascam e vendem para comerciantes ao valor de R$ 40 o saco, ou cerca de R$35 reais pelo quilo. O valor final depende do preço de compra da castanha in natura.
Segundo a agricultora, sua família deu início à produção nesse ramo porque não encontrava outra forma de sustento. “Começamos a trabalhar com castanha porque já não tínhamos soluções para nos alimentarmos. Meu cunhado já trabalhava com isso e começamos a tentar também, para pelo menos poder comprar nosso próprio alimento. Hoje a castanha é o nosso meio de sobrevivência”, lembra Marciele. Na comunidade em que ela vive, há 51 famílias que também cultivam frutas e verduras, vendidas na feira de hortaliças orgânicas. O excedente é doado para os vizinhos.
A presidente do Assentamento Boa Sorte, Marlene Ezequiel das Neves, conta que o espaço é uma forma de unir as pessoas e de ter um local para viver do próprio trabalho. Ao comparar o passado e o presente, ela relata que morava em uma casa de taipa e atualmente vive em uma habitação de tijolo com os filhos. “Antes, eu morava na fazenda de outras pessoas e trabalhava para os outros, hoje eu tenho meu sítio e meu roçado. Eu mesma planto banana, maracujá, macaxeira e vendo meus produtos”.
A respeito das dificuldades do trabalho com a agricultura familiar, as vizinhas concordam que o período da seca é o principal problema, pois o fenômeno provoca o êxodo rural, levando os jovens a procurar trabalho nos centros urbanos. Sem qualificação específica para os empregos “da cidade”, acabam passando necessidade e dependendo de auxílios do governo. Por conhecer e ter vivido de perto essa realidade, Marciele diz que gosta bastante da agricultura, mas que sempre sonhou em fazer faculdade e viu no curso de Gestão uma oportunidade de realizar essa meta.
O curso de Gestão de Cooperativas é voltado para o seguimento que atua na reforma agrária, como assentados rurais e remanescentes quilombolas, com o propósito de formar jovens e adultos no nível de graduação tecnológica, a qual é ofertada pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, na UFRN, está vinculada ao Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA), sob a gestão do Departamento de Ciências Administrativas (Depad).
A faculdade é presencial e se baseia na “Pedagogia de Alternância”, ou seja, os alunos têm uma carga horária em sala de aula e cerca de 20% acontece no campo. Assim, permite uma qualificação na qual conhecimentos construídos pela vivência dos participantes são pontos principais. O curso funciona no Centro de Treinamento do Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte/RN (Centern- Emater), no município de São José do Mipibu, onde os estudantes têm direito a alojamento, alimentação e transporte, custeados pelo Incra.
De acordo com o coordenador do curso, Washington José de Sousa, a graduação começou em 2013. “Na turma anterior, ofertamos 50 vagas e concluíram 43 estudantes, o que consideramos uma taxa elevada de alunos se formando. Já na segunda, abrimos 60 vagas e, em virtude de problemas com o repasse de verba do governo federal ao programa, a taxa de evasão está crescendo, de tal forma que hoje estamos com 42 alunos antes de finalizar a turma”, relata o docente. Com disciplinas ministradas no campo da gestão e da administração, os graduandos estudam marketing, estratégia, produção, fundamentos da administração, além de disciplinas específicas para compreensão da reforma agrária e do mundo do cooperativismo, como metodologias participativas, diagnóstico de gestão e contabilidade básica.
Diante da diversidade da grade curricular, o aluno da segunda turma da graduação tecnológica, Renato Costa dos Santos, que vive na comunidade quilombola de Capoeiras (Macaíba), diz que teve contato com uma realidade que não imaginava que existia ou que considerava muito distante dele. “Eu vivia nesse mundo pequenininho aqui da comunidade. Aí, quando a gente sai, é que vê como o mundo é gigantesco, e o curso abriu muitas janelas para eu enxergar isso”.
A história de Renato assemelha-se a de muitos jovens brasileiros. Morando com a mãe e duas irmãs, é o primeiro da família a terminar o ensino médio e entrar no ensino superior. Sua mãe não estudou porque teve que cuidar dos filhos, e o pai cursou até o Ensino Fundamental, pois teve que trabalhar logo cedo na agricultura para sustentá-los. Dessa forma, para o estudante, sair da comunidade quilombola e chegar à universidade é uma vitória. “Quando terminei o ensino médio, pensei que iria arranjar um emprego e minha vida iria acabar ali, mas fazendo uma faculdade acredito que poderei avançar bastante”. Ao concluir o curso, o profissional de Gestão de Cooperativas está capacitado para gerenciar cooperativas ou associações de qualquer setor e em diversas áreas, como produção, recursos humanos, saúde, habitação, entre outras, além de se tornar credenciado profissionalmente pelo Conselho de Administração.